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A TRAJETÓRIA DE

UM ARTISTA RUMO ÀS

NOVAS MAURÍLIAS

 

Tânia Bittencourt Bloomfield entrevista Tom Lisboa

Desde os seus primeiros trabalhos, é possível perceber um interesse pelas imagens produzidas em diferentes contextos midiáticos, a partir do fragmento em que utiliza o procedimento de justaposição. O trabalho de associação e articulação desses significantes, pela lógica da seleção, acarreta, em todos os casos, novos significados possíveis às imagens particuladas. Nicolas Bourriaud, em seu livro Pós-produção (2009), detectou esse tipo de encaminhamento metodológico em poéticas artísticas contemporâneas. No subtítulo de seu livro, Bourriaud afirma que os artistas e a arte reprogramam o mundo dessa forma. Retrospectivamente, você reconhece a sua produção de primeira hora inserida nessa moldura conceitual?

 

TOM: Acredito que essa seja uma característica que acompanha toda a minha produção. Sou um tipo de fotógrafo que nunca teve que ouvir a pergunta “Que câmera você usou?”. De modo geral, ouço mais “Como você fez isso?”, o que revela uma curiosidade sobre as interferências que realizo na busca por determinado resultado. E, quando me refiro à pós-produção de imagem, não estou falando de tratamento em Photoshop, mas em expandir a ideia de fotografia para outras áreas, formatos e materiais. É um processo de transformação. Em The Commuting (2019) embarquei em um tema tradicional de street photography, que é o ambiente do metrô. A ideia era traduzir minha exploração visual dentro desses vagões. De acordo com Jacques Aumont, a exploração visual é algo construído ao longo do tempo, após nosso olhar percorrer sucessivos pontos de fixação. Seguindo esse raciocínio, o que chamamos de memória é uma lembrança da integração desses pontos. Isso explica o porquê de nossa percepção ser incompleta. Ela é baseada nos fragmentos que escolhemos acumular e no modo como nossa mente os coloca para interagir. The Commuting foi minha primeira experiência com colagem e, também, a primeira vez em que alterei manualmente a imagem. Cada obra dessa série consiste em quatro a seis fotos de determinado ângulo dentro do vagão que foram impressas em papel de cartão-postal branco. Posteriormente, perfurei cada foto na busca por personagens e situações que registrei durante minhas viagens. Por fim, fui sobrepondo e colando essas fotos, de modo a poder visualizar os detalhes perfurados. O resultado é uma fotocolagem em que podemos ver apenas o que foi escavado através das camadas e o restante permanece inviolável, porque todas as fotos foram amalgamadas em uma única peça. No caso das esculturas de Street Topographies (2010), as fotos passaram por um rigoroso processo de edição antes de eu sobrepô-las nas lâminas de acrílico que deram volume e sensação de tridimensionalidade ao espaço urbano. Além disso, a ligação da fotografia com a intervenção urbana foi fundamental, porque cada espaço me inspirava à criação de certos objetos fotográficos. Posso citar o caso de Blow up (2007), que foi realizado em parques de Curitiba, São Paulo e Buenos Aires (durante o Festival de La Luz, em 2008). Nessa série, produzi “lentes de aumento de grama” que faziam uma alusão ao filme homônimo de Michelangelo Antonioni. Só que, diferentemente do filme, ao ampliar minhas fotos, eu não revelava os contornos de um cadáver, mas do pixel, que é o menor elemento ao qual se pode atribuir uma cor na foto digital. Em Closer (2018), contratei o fotógrafo Guilherme Pupo para fazer fotos com drone. A diferença é que eu não queria ver a cidade de cima, mas me aproximar de certos monumentos que estão muito acima do nosso olhar. Com essas fotos em mãos, produzi totens que traziam essas estátuas em grandes dimensões e os expus no nível da rua. De fato, a pós-produção é uma característica do meu processo, o que me afastou muito da tradição do “instante decisivo” de Henri Cartier-Bresson. Em séries como The Commuting e Street Topographies, o que me interessa é como os vários instantes ali apresentados se conectam, emulando uma experiência quase cinematográfica. Já em obras como Blow up e Closer, a fotografia interage com o ambiente urbano, criando um cenário que dialoga com o espectador.

 

Eu me referi ao fato de você compilar imagens do cotidiano, especialmente dos meios de comunicação de massa, para compor seus trabalhos. Nesse sentido, o trabalho acaba por se configurar como uma espécie de mosaico, um caleidoscópio de imagens que não foram produzidas por você, mas que ganharam novas possibilidades de existência quando foram selecionadas e justapostas em seus trabalhos. Acima, você mencionou outro procedimento que parece estar presente em diferentes momentos da sua trajetória artística, que tem a ver com a geração de palimpsestos. De que forma e por que você mobiliza essa operação em camadas?

 

Entendo, mas esse trabalho de pós-produção ao qual me referi também se aplica às imagens dos meios de comunicação de massa. Eu elaboro novas camadas de interpretação para elas. Palimpsestos, um termo que se refere ao processo de apagar um texto para que outro possa ser escrito em cima, é até o nome de uma série de vídeos que produzo desde 2008. Para criá-la, procuro por uma coincidência na diagramação dos jornais: preciso encontrar uma foto em que, no seu verso, tenha um artigo relativo àquela imagem. É bem difícil, mas acontece. Basicamente, o que se vê nesse vídeo sou eu, lentamente, apagando com um pincel molhado o texto que fica na frente daquela foto. É possível ler a notícia, fazer a relação visual com a fotografia e, aos poucos, ver essas conexões serem rompidas. Texto e imagem sempre tiveram uma relação tão íntima quanto conflituosa no fotojornalismo. Palimpsestos (2007) enfatizam essa questão quando sobreponho essas formas discursivas e interajo com elas. Trabalhar com camadas e justaposições me ajuda a colocar a fotografia em um lugar de autocrítica, quase uma desilusão. Uma vez, o curador Peter C. Bunnel disse que, de modo geral, o que se entende por fotografia são duas dimensões se passando por três e um recorte de imagem representando a própria vida. Muito do que faço é desconstruir o processo fotográfico tradicional para que fiquemos atentos a certas armadilhas.

 

Essa intenção de desconstrução do processo fotográfico fica muito evidente em polaroides (in)visíveis (2005), em que não é possível se precisar onde a fotografia acontece exatamente: se no papel em formato de polaroide, em que há inscrições/orientações geográficas ao participante; se no seu olhar, que recorta o contexto urbano; se na própria paisagem e em seus detalhes, que requereriam um olhar muito atento do habitante para serem vistos; se no enquadramento do panorama sugerido por você, mas configurado, provavelmente com “erros de registro”, pelos participantes. Aqui, como em outros trabalhos, parece haver uma preocupação filosófica sobre a natureza das imagens. Estamos no âmbito de uma fenomenologia da fotografia?

 

Sim, as polaroides (in)visíveis representam muito bem essa ideia fenomenológica. A tecnologia que uso é até mais rudimentar que a analógica, porque não envolve nenhum tipo de equipamento. Minhas polaroides são pequenos papéis sulfite de cor amarela, com dimensões muito próximas de uma Polaroid de verdade, onde substituí a imagem por um texto que instiga o espectador a olhar ao redor e a redescobrir o espaço em que está inserido. Tudo é experiência nessa série. Tem muito a ver com as teorias de Lefebvre sobre espaço percebido, concebido e vivido e que passa ainda sobre sua análise dos ritmos e da vida cotidiana. Para escrever os textos das polaroides, tenho que percorrer a cidade, parar em vários pontos, observar detalhes e estabelecer uma conexão muito íntima com o local para escrever as mensagens/orientações em cada obra. Posteriormente, o espectador vai reviver meu trabalho ao ler os textos e “ver as minhas polaroides” com os próprios olhos. Só que entre o meu momento e o da outra pessoa há muitas diferenças. Apesar dos meus textos serem claros e objetivos, há sempre um espaço para o improviso ou erro, uma liberdade que o leitor tem de adicionar ou suprimir informações. A inexistência da câmera fotográfica também foi fundamental. Sem o aparato técnico, a conexão das polaroides (in)visíveis com as imagens ao redor é mais natural, mais próxima da vida.

 

Por falar em polaroides (in)visíveis, o que representou o recebimento do importante prêmio Porto Seguro de Fotografia, em 2005, para a sua reputação de “fotógrafo que não usa aparato como câmera ou filme”, ao apresentar trabalhos e ao propor problemáticas poéticas ligadas ao campo da fotografia? Que tipo de repercussão houve naquele momento?

 

O Prêmio Porto Seguro foi muito importante na história das polaroides (in)visíveis. As polaroides começaram como uma intervenção urbana geograficamente limitada. Lembro que gastei apenas R$ 15 e que foram feitas 20 obras para três praças de Curitiba. No entanto, a ideia dessas polaroides sem imagens, mas que podiam ser vistas pelos olhos do espectador, foi bem impactante na época. Até então, o Prêmio Porto Seguro havia reconhecido apenas trabalhos nitidamente visuais. Acredito que foi bom para mim e, também, para o prêmio, porque outros fotógrafos se sentiram incentivados a propor trabalhos que desafiavam a linguagem fotográfica. Eu cheguei a ser selecionado outras três vezes para esse prêmio, mas nunca com fotografia “de verdade”. Palimpsestos eram vídeos; Still Life era uma animação web e ação urbana; LUGAR, um tipo de performance. Outra repercussão importante foi a inclusão das polaroides no livro Geração 00 – A Nova Fotografia Brasileira, de Eder Chiodetto. Nessa publicação, ele relacionou as principais contribuições surgidas no país durante a primeira década nessa área. Além disso, as polaroides foram recriadas para os espaços do SESC Campinas, SESC Belenzinho e Caixa Cultural Curitiba, participaram do Circuito SESC de Artes, serviram de inspiração para um workshop que realizo até hoje e já foram feitas em quase 30 cidades.

Com esse trabalho, eu aprendi também duas coisas importantes. A primeira foi a liberdade criativa que eu tive por trabalhar com baixo orçamento. Gastar apenas R$ 15 e obter os resultados que eu alcancei foi surpreendente. Isso acabou dando origem às "intervenções de maio", um projeto que se estendeu por quase 15 anos. De modo geral, eu me propus a fazer todo mês de maio uma nova intervenção urbana em Curitiba com no máximo R$ 300, um valor que nunca reajustei durante todo esse tempo (2005 a 2018). A cidade foi, e ainda é, minha principal galeria de arte, um local que me inspira e que utilizo sem cerimônia e com muita responsabilidade. A segunda coisa foi que eu me senti confortável em brincar com a linguagem fotográfica de múltiplas formas. Quando não se tem nada a perder, correr riscos e poder cometer erros são as principais recompensas. Câmera não era, e continua a ser, algo pouco determinante no que faço. Uso a tecnologia que tenho disponível e invento outras quando preciso. Sem as polaroides (in)visíveis, talvez eu tivesse demorado um pouco mais para ter essas percepções.

 

Nos desdobramentos de polaroides (in)visíveis, parece ter havido uma intensificação do papel de coautoria das pessoas que decidem participar de suas proposições artísticas, executando tarefas e contribuindo para o seu acervo de imagens, como no caso, por exemplo, do trabalho ação urbana LUGAR (2008). Como se deu esse processo de transição, em que a sua posição de autor cede mais espaço a outras pessoas?

 

Na intervenção urbana polaroides (in)visíveis, a imagem já é uma coautoria entre mim, que escreve o texto, e o espectador, que o lê e vê a imagem. Posteriormente, em 2006, eu fiz minha primeira experiência em que o espectador podia ser também um interventor. Nas " polaroides (in)visíveis - intervenções privadas", eu criei polaroides (in)visíveis em 15 idiomas para serem impressas e colocadas em banheiros de museus e galerias ao redor do mundo. Como eu não podia viajar tanto quanto eu gostaria, comecei a sugerir que amigos me ajudassem a fazer esse trabalho. Inicialmente, eu imprimia na minha casa, usando o papel amarelo característico das polaroides, eles as levavam em suas malas e faziam a intervenção nos espaços culturais. Com o passar do tempo e o maior interesse das pessoas em participar, desenvolvi o "manual do interventor privado", que fornecia instruções para quem quisesse realizar a intervenção, e um link para fazer o download da Polaroid no idioma desejado. Ao todo, cerca de 15 pessoas me ajudaram a espalhar polaroides em mais de 40 museus, de 30 cidades, em 16 países. Todos receberam crédito pela intervenção e as fotos estão no meu site.

 

Com as “Intervenções Privadas”, eu descobri que o público não só aprecia arte, mas gosta também de agir. Às vezes só não sabe como e o que fazer. Dois fatores ajudaram muito. Primeiro, o fato de meus trabalhos utilizarem materiais muito simples ou serem realizados virtualmente. Em segundo, assim como num jogo, eu estabeleci regras de participação que permitiram a todos exercer sua criatividade, mas mantendo minha intacto o conceito da ideia que eu criei. Tenho vários trabalhos colaborativos online, como o Curto Circuito, a VAZIO off Bienal e Cowtadinhos (uma exposição paralela à Cowparade). Fiz também um outro desdobramento das polaroides (in)visíveis chamado Autorretratos, que aconteceu no SESC Água Verde e no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB RJ). O interessante desses autorretratos é que todos tiveram como origem um único texto, que era mais ou menos assim: “Imagine que seu rosto está posicionado nesta parte da Polaroid. Se a foto fosse tirada agora, o que estaria ao fundo dela?”. Mais de 400 pessoas participaram dessa exposição no CCBB RJ e foi incrível perceber a multiplicidade de resultados que um único texto pode proporcionar. A ação urbana LUGAR foi também muito bem-sucedida. Desde 2008, foram quase 500 pessoas que, além de mim, visitaram aproximadamente 100 cidades, de 15 países. O projeto mais recente foi realizado agora, durante a pandemia da Covid-19, e se chamou Linhas de Horizonte (2020). Como neste período a janela se transformou em um limite entre nosso espaço e o mundo externo, eu solicitei que as pessoas me enviassem fotos das vistas de suas janelas. Havia apenas uma exigência: nessa paisagem deveria ter qualquer tipo de linha que começasse no lado esquerdo e fosse até o lado direito da foto. Isso porque eu queria construir uma única e longa linha ao concatenar essas imagens. A obra final ficou com mais de 40 metros de comprimento e é composta por quase 320 fotos de 199 pessoas em 82 cidades de 22 países. O retorno que eu tenho é sempre muito positivo. Eu consegui estabelecer uma rede onde o que nos une é o prazer de realizar uma ação artística. Ao todo, acho que umas 3.000 pessoas já participaram de minhas convocatórias.

 

Relendo Johan Huizinga, e seu Homo Ludens (2012), lembrei que o autor atribuiu um alto grau de ludicidade às formas de arte em que a ação é parte inerente da obra, como é o caso da música e da dança, por exemplo. Às artes plásticas, ele atribuiu um baixo grau de ludicidade, e um de seus argumentos para tal juízo diz respeito ao fato de as "artes plásticas estarem ligadas à matéria e às limitações formais", o que impediria o jogo. Mas Huizinga não alcançou o estabelecimento das linguagens artísticas contemporâneas. Em seus trabalhos, especialmente nas intervenções urbanas, eu percebo a presença de um forte fator lúdico, dado pelos jogos que você propõe aos participantes. Isto é, de fato, algo que você persegue e entende como parte inerente dos seus trabalhos?

 

Como eu disse, gosto de propor essas aberturas para que o jogo possa acontecer. Com as polaroides (in)visíveis eu tive um retorno muito legal de monitores do SESC Belenzinho. Eles me disseram que as crianças adoraram as polaroides porque virou uma competição entre elas para ver quem achava a imagem primeiro. Acho que é do ser humano querer completar algo que está faltando. Na ação urbana LUGAR, eu desenho esses trajetos em formato de L na planta da cidade, marco os pontos de parada para fazer as fotos e deixo o participante livre para escolher a técnica e o conteúdo durante o passeio por esse percurso. Em alguns casos, a pessoa insiste para eu escolher as fotos que serão publicadas no site desse trabalho, mas eu enfatizo que a escolha é dela e que exercitar esse processo de seleção é um importante aprendizado. Outras vezes sou surpreendido porque o fotógrafo subverte minhas próprias expectativas. Uma vez me pediram um L para ser feito em Paris. Seria o primeiro na capital francesa e estava curioso para ver as imagens dessa cidade. Só que a Dani Busarello, que havia me pedido o trajeto, optou por fotografar uma não Paris. As fotos eram de bitucas de cigarro na rua, uma sombra na calçada, folhas em uma poça d´água e outras imagens propositalmente desfocadas, a ponto de não caracterizar nenhum local específico. Eu amei o ensaio dela e outros fotógrafos também tiveram atitudes igualmente inesperadas.

 

Outra estratégia é abrir convocatórias com determinado tema, divulgar e aguardar os resultados. Nessas convocatórias não há seleção de bons e maus trabalhos ou prêmio. Se atender ao tema, a pessoa já está participando. Nessas propostas, ver o conjunto é mais legal do que destacar uma obra específica ou escolher um vencedor. É o caso da VAZIO Off Bienal, uma convocatória que eu criei em paralelo à Bienal de São Paulo que teve um andar inteiro vazio, em 2008. O vazio estava dando tanto assunto que resolvi convidar o público a construir um modelo de vazio que eu propus, fazer uma foto dele ou de qualquer outra coisa que representasse o vazio e me enviasse. Foi um absurdo a diversidade de trabalhos que recebi. Outra proposta foi (in)felizmente, onde a intenção era criar um banco de dados de não currículos. Um não currículo é uma coletânea de todos os nãos que recebemos em nossa trajetória artística, ou seja, o avesso do que costumamos celebrar em nosso currículo. Eu estava disposto a criar um banco de dados sobre esse tema, um grande catálogo dos nossos insucessos para podemos perceber até que ponto eles afetaram nossa carreira. Por exemplo: eu ter optado por intervenções urbanas não foi por acaso, mas uma consequência por não ter conseguido me inserir no circuito de museus e galerias. Acho que o não currículo é um assunto que aprendemos a relevar com o passar do tempo, mas não deve ser ignorado. O meu até hoje está relativamente atualizado.

 

Posso citar ainda o trabalho Visita Premiada, onde eu dividi 30% do valor líquido do meu cachê por ter sido selecionado para o Salão Paranaense com o público. Visita Premiada era um jogo de caça-palavras onde o público podia encontrar termos ligados à arte contemporânea e, ao mesmo tempo, sugerir uma palavra de cinco caracteres para completar a obra. Essa sugestão era colocada numa urna e, durante três ou quatro meses, eu sorteei cinco cheques de aproximadamente R$ 300. Hoje vejo Visita Premiada como um jogo duplo: com o público e os artistas (que, assim como eu, são seduzidos pelos prêmios oferecidos por essa loteria chamada Salão de Arte).

 

Por fim, acho importante citar um outro jogo que criei, chamado "Estado à Parte". Esse foi um "jogo manifesto" sobre a exposição "O Estado da Arte: 40 anos de arte contemporânea no Paraná" sob curadoria de Maria José Justino e Arthur Freitas. No formato de jogo da memória, 30 artistas com trajetórias relevantes na produção paranaense e que não foram incluídos na exposição “O Estado da Arte” atenderam minha convocatória. Na minha opinião, esta foi uma reação necessária para ajudar a criar um panorama que fosse representativo, abrangente e complexo das artes visuais em nosso estado. Sem esse "Estado à Parte", o suposto "Estado da Arte" não se sustenta, porque há muitas peças sobrando. Todas as peças desse jogo da memória estão disponíveis para download até hoje no meu site.

 

Eu sei que você é um leitor voraz de ficção. De que forma autores como Nabokov, Proust, Machado de Assis, Cortázar, entre outros, e suas respectivas literaturas exercem influência em seus trabalhos?

 

Eu amo literatura porque cada livro é como uma bomba que precisa de um leitor para ser acionada. E é a combinação da voz do autor com a minha que vão detonar as paisagens, os rostos dos personagens, as sensações, tudo. Também acho que o tempo e as sensações são mais reveladoras quando escritos. Lembro agora de uma descrição do personagem D. Tonica, de Machado de Assis: “Tinha 39 anos e uns olhos pretos, cansados de esperar”. Acho que há uma força de síntese visual, emocional, temporal que meu trabalho de fotografia não alcança. Tenho ainda apreço por escritores que subvertem a linguagem, como Júlio Cortázar, Vladimir Nabokov ou Alejandro Zambra. Cortázar afirmava que a função do escritor era destruir a literatura. Talvez por isso goste tanto de usar palavras em alguns trabalhos e destruir um pouco a fotografia. Em 2010, eu criei caractere(s): retratos em preto e branco, uma exposição de retratos de personagens da literatura brasileira do começo do século XX. Era uma instalação que foi montada no SESC Paço da Liberdade, em Curitiba, com 64 retratos escritos nas palavras dos próprios autores, mas editados por mim. Primeiramente, havia o impacto de não atender a expectativa do visitante que queria ver retratos. Na verdade, o preto e branco era o das palavras escritas sobre os fundos brancos. A visualização acontecia apenas após a leitura de cada texto. Por fim, percebíamos como nosso idioma tinha mudado ao longo de 100 anos. Muitas expressões eram antiquadas ou caíram em desuso e resultavam em visualizações "bugadas". Um dos retratos masculinos, por exemplo, dizia que o personagem usava suíças. Como eu não sabia o que era, tive que consultar um dicionário para poder imaginá-las corretamente. Lembro ainda de outra exposição onde a literatura detonou todo o processo criativo. Em 2004, desenvolvi uma curadoria para a BrasilTelecom baseada em um haikai da Alice Ruiz: "dentro do sono / o corpo se descobre / sem dono". Artistas paranaenses foram convidados a recriar visualmente essa sensação e a combinação dessas imagens com o texto original terminaram por se potencializar mutuamente.

 

Na proposta M(USE)U, desenvolvida no contexto do 66º Salão Paranaense, em 2017, houve a intenção de chamar a atenção do transeunte para o equipamento cultural, logo ali, próximo às calçadas em que circula, cotidianamente. Segundo a estatística que você levantou de um relatório da Fecomércio, de 2015, a maior parte da população não frequenta exposições de arte. Curiosamente, uma das estratégias que você usou para chamar a atenção dos habitantes de Curitiba para a exposição que estava sendo apresentada pelo Museu de Arte Contemporânea (MAC), naquele momento, consistiu na contratação de um locutor de propaganda de ofertas do comércio de rua, colocando-o na frente do prédio com o uso de microfone e alto-falante, com o objetivo de convidar a população a entrar no museu. Do meu ponto de vista, nesse trabalho, fica clara a vontade de problematizar a inépcia de políticas públicas culturais e, adicionalmente, fazer alusão à contraposição entre uma cultura elitista e uma cultura popular que, em se tratando do espaço geográfico em questão, encontra-se uma de frente para a outra. Como foi o processo criativo para a execução e apresentação desse trabalho?

 

Nos últimos anos, quando participei de salões de arte, eu produzi obras que discutiam algo relativo ao próprio evento. Em 2015, com Visita Premiada, eu dividi parte do meu cachê com o público através de sorteios, por exemplo. Essa era uma crítica que envolvia tanto questões do mercado de arte quanto dos próprios artistas que são seduzidos pelos valores monetários oferecidos pelas instituições. Com M(USE)U, eu tive um pressentimento de que o Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR), que sedia um dos mais antigos salões de arte do Brasil, era um prédio que poucos transeuntes do centro da cidade sabiam que era um museu. Para isso precisava testar minha hipótese. Um dia eu fui para a frente do MAC-PR e, durante toda uma tarde, eu perguntei para várias pessoas: “Você sabe que prédio é esse?”. Cerca de 70% não sabia e, dos que disseram ser um museu, eles olhavam primeiro para o prédio e depois me apontavam a porta de entrada que tinha escrito acima dela: "Museu de Arte Contemporânea do Paraná". Em outra ocasião, eu fiz mais um experimento, só que umas duas quadras distantes do MAC-PR. Dessa vez, eu perguntei como fazia para chegar àquele museu. Mais de 90% dos entrevistados não souberam me dar orientação alguma. Tive, então, a ideia de dar visibilidade ao museu escrevendo em sua fachada a palavra “MUSEU” em letras garrafais (e na cor azul, para contrastar com a cor vermelho-bordô de suas paredes). Foi perfeito até por uma coincidência arquitetônica: as três janelas do meio ressaltavam o verbo USE que está dentro da palavra MUSEU. Visualmente, eu já tinha ficado satisfeito com o projeto, mas não via como apenas um letreiro poderia fazer o público adentrar aquele espaço. Foi o que você comentou do embate entre a cultura elitista e a popular. Faltava ao projeto falar a mesma língua de quem caminhava naquele espaço todos os dias. Em umas das tardes em que fui realizar as entrevistas, eu passei pelo Leonardo Lemes, na Rua XV de Novembro, e gostei do modo como ele anunciava os produtos das lojas. Na hora eu entendi que era isso que estava faltando para completar meu trabalho. Conversamos rapidamente e ele topou participar, mesmo sem entender muito do que se tratava. Primeiro, eu mostrei o museu para ele e, em seguida, o treinei com informações importantes sobre as atividades gratuitas que estavam ali disponíveis, tais como exposições, visitas guiadas, acervo de livros, CDs, revistas e muito mais. Por fim, deixei-o livre para improvisar e lidar do público da maneira que achasse mais apropriada. Se não me engano, foram umas 10 performances de três horas de duração cada. Em uma de suas performances, ele colocou mais de 100 pessoas lá dentro. Foi maravilhoso. O Leonardo é um verdadeiro animador de auditório.

 

Além da dialética cultura elitista x cultura popular, exemplificada pelo trabalho M(USE)U, é possível intuir uma oposição problematizada em alguns de seus trabalhos: natureza x cultura. Por exemplo, nos trabalhos Mirando(a) (2009), Still Life (2009), Intervenção de Outono (2012), Blow up (2007), Projeto Cinematógrafo (2006), a natureza é mediada por algum tipo de artifício tecnológico e, assim, as imagens acabam por sugerir uma espécie de desconcerto nos fruidores dos seus trabalhos. Explore mais essa temática.

 

O que me incomoda e fascina na fotografia é sua capacidade de nos iludir. Facilmente aceitamos que uma folha de papel é capaz de absorver a tridimensionalidade da vida. No meu modo de ver, o que ocorre é uma tradução imperfeita, limitada e sempre tendenciosa (mesmo quando é um trabalho revestido de excelentes intenções). Essas séries que você mencionou possuem, propositalmente, algo de errado, incompleto ou estranho. Em vez de criar uma imagem para se acreditar, eu prefiro produzir imagens para se duvidar. A fotografia é como uma gravura de M.C. Escher, uma distorção que nos parece natural. Se você olhar rapidamente, tudo se encaixa e a paisagem parece verossímil. Por outro lado, se a examinamos com mais cuidado, é como se fosse um quebra-cabeça onde, apesar de todas as peças se encaixarem, elas não retratam um todo coerente. É preciso prestar atenção aos detalhes para percebermos que a fotografia é um quebra-cabeças com algumas peças trocadas. Mirando(a) é uma intervenção urbana onde fotos de pássaros foram emolduradas e penduradas novamente em árvores. Aqui eu tento explorar algumas contradições, tais como o embate entre o que é natural e o que é artificial e o estranhamento da descontinuidade espaçotemporal entre uma imagem e outra. Já Still Life é, de fato, um quebra-cabeça onde eu decompus uma paisagem em quatro fragmentos, e cada um deles mostra o passar do tempo em uma velocidade diferente. Essa manipulação do tempo confunde as ações, as horas do dia e, nesse embaralhamento contínuo, a paisagem original nunca vai ser percebida novamente. Em Projeto Cinematógrafo, eu discuto a questão do enquadramento. As molduras coloridas que podem ser manipuladas pelo público simulam, de modo lúdico, que dentro daquele retângulo, assim como do visor da câmera, há muitas outras possibilidades de recorte do mundo. Novamente, assim como nas polaroides, eu inverto o papel com o espectador e o coloco como responsável pela obtenção da imagem final. Acredito que, junto com essas atividades de desestabilização através do erro, da distorção e da inversão de papéis, nosso olhar pode ser reorganizar de outra forma. São estímulos em direção contrária às das imagens comerciais e de fácil leitura que tanto saturam nossa vida cotidiana.

 

O filósofo Vilém Flusser apontou que a imagem técnica fotográfica instaurou novas formas de pensamento e mesmo modos de ser, em meio a uma sociedade em que a importância da informação é capital. De fato, Flusser parece ter usado a fotografia como uma metáfora para se referir a algo muito mais abrangente, o sistema de produção capitalista e o estágio em que se encontrava, até o momento em que ele escreveu seu livro Filosofia da Caixa Preta (2002). Ao manipular o "aparelho", quem pretende gerar uma imagem fotográfica pensa que o domina; bastaria apertar alguns botões e, eventualmente, preparar o aparelho para tirar dele a melhor performance possível. No entanto, o usuário é insidiosamente dominado por ele, por se apresentar como uma tecnologia do tipo "caixa-preta", que oculta do usuário o programa que o constituiu. Para que deixe de ser um mero "funcionário" a serviço do programa/aparelho, é preciso que o usuário sabote ou subverta o programa, indo além do que, inicialmente, se colocava como limite para a produção de novas possibilidades de criação ou de uso. Dessa forma, o usuário deixaria de ser um funcionário para se tornar um fotógrafo, um artista, um revolucionário. No seu trabalho Brinquedografia, de 2013, você parece querer demonstrar, de forma lúdica, a manifestação filosófica de Flusser. Mas existem nuances, nesse trabalho, como o fato de você se valer de um brinquedo popular que é um simulacro mal-acabado de uma máquina fotográfica; de apagar as imagens prontas que estavam "programadas" no brinquedo e substituí-las por frases de autores que refletiram sobre a artificialidade das imagens técnicas; e de o trabalho, possivelmente, chegar às mãos de um público não muito recorrente na fruição/participação de suas propostas, a saber, as crianças. Pelas implicações e dobras conceituais intrínsecas ao trabalho – inclusive a operação de abrir a "caixa-preta", mostrando a manipulação do aparelho, e de seu conteúdo, realizada para a ciência do usuário –, o que eventualmente poderá acarretar um caráter hermético para alguns "usuários" não muito familiarizados com a arte contemporânea, seria possível inferir que você produziu um "programa" e os colocou na posição de "funcionários"?

 

Interessante essa inversão que você propôs, que o artista, ao interferir no equipamento, cria uma nova máquina pré-programada. Não deixa ser irônica essa situação. No caso de Brinquedografia, a opção pela câmera de brinquedo ia além da questão lúdica e de ser um simulacro mal-acabado. O principal motivo foi que o público, seja ele adulto ou infantil, já antecipa o tipo de imagem que tem ali dentro. De modo geral, são desenhos ou fotografias coloridas que giram quando se aperta o botão. Mudam os temas, mas sempre são alguma forma de ilustração e nunca, em hipótese alguma, um texto para ser lido. Ainda mais textos de Susan Sontag, Vilém Flusser, Júlio Cortázar, Lucia Santaella ou Roland Barthes. As crianças talvez não tenham entendido a profundidade de algumas citações, mas elas não foram o único público que eu explorei. Deixei as câmeras em bares, cinemas, teatros, praças e universidades. Só que, independentemente da idade, eu tenho certeza de que eu frustrei a expectativa inicial de todos que pegaram as câmeras, porque elas são objetos para ver, e não para ler. Muito menos para ler textos que questionam o fazer fotográfico e a imagem em geral. A interferência naquele objeto do cotidiano era mais do que evidente, porque ela não correspondia à produção dominante no mercado. Ao todo, eu imprimi frases de 13 autores, nas 100 unidades produzidas. Eram frases como: “As fotografias podem mentir” (Umberto Eco); “Controlar as imagens é uma forma potencial de poder” (Lucia Santaella); “Imagens são mediações entre o homem e o mundo” (Vilém Flusser); “Imagem é um lugar que não existe” (Ananda Carvalho); “Todo olhar se resume em falsidade” (Júlio Cortázar); “Hoje, tudo existe para terminar em uma fotografia” (Susan Sontag). Se, por um lado, eu criei um novo “programa”, por outro eu libertei o público da posição de “funcionário”, porque acho que a reflexão crítica sobre o aparato é libertadora. Esse tipo de caixa-preta não nos cega. Muito pelo contrário.

 

Em 2018, você estava ocupado com o cumprimento das formalidades da seleção para a obtenção de uma vaga no MA in Photography and Urban Cultures, Goldsmiths, University of London, UK. Foi bem-sucedido em seu intento e o cursou, durante o ano de 2019. Como foi o processo de seleção e a vivência na Inglaterra, até a obtenção do grau? Que diferença você percebeu em sua prática artística em Londres, em comparação à produção realizada no Brasil?

 

O processo seletivo que você mencionou foi o do Chevening Awards, um programa de bolsas de mestrado que o Reino Unido oferece anualmente para estudantes de aproximadamente 160 países. São cerca de 1.500 bolsas para algo em torno de 50.000 que se inscrevem. Não existe restrição quanto à área de atuação, mas de modo geral, os candidatos que mais se beneficiam são os advogados, arquitetos, administradores ou jornalistas. Acredito que eu fui o único artista selecionado no Brasil em 2018.

 

Eu escolhi cursar o mestrado em Photography and Urban Cultures, na Goldsmiths, University of London. Uma particularidade desse curso é que ele pertence ao departamento de Sociologia, uma área em que eu não possuía muita experiência. Na minha opinião, houve um perfeito intercâmbio entre mim e essa instituição. Sociólogos, pelo menos naquele país, possuem uma relação conflituosa com a imagem. Fortemente embasada pela palavra, eles chegaram a criar a Sociologia Visual, justamente para eles poderem utilizar fotos, gráficos e tabelas com mais liberdade. Mesmo assim, a fotografia, quando utilizada, é muito técnica, ilustrativa e fortemente concatenada com a história que se pretende contar. Veja bem, eu não digo isso como se fosse um problema. Apenas era o avesso do que estava acostumado a produzir até então. Técnica é uma coisa que eu, por exemplo, nunca levei muito a sério. Essa vivência me afastou bastante da minha zona de conforto e possibilitou que eu me aproximasse do lado mais humano do curso e de temas como Gentrificação, Comunidades e Gênero. Em Postcards for the Future, por exemplo, eu desenvolvi uma série de seis postais para preservar a memória da Red Gallery, um centro cultural que, depois de revigorar uma região de Shoreditch durante oito anos, teve sua demolição decretada para ser substituída por um hotel de luxo. Apesar de todos os seus acessos estarem interditados, eu consegui registrar a fachada da galeria que ainda estava intacta, assim como detalhes e marcas que o tempo deixou em suas paredes. Os postais tiveram uma edição com seis fotos diferentes e, no verso, eu imprimi depoimentos de pessoas que costumavam frequentar a galeria. Ao todo foram feitas 300 unidades que eu distribuí, inclusive, para Ernesto Leal, criador e gerente da Red Gallery. Ele ficou muito surpreso com a iniciativa, porque havia cerca de um mês que eles haviam deixado aquele prédio e ainda estavam processando o que tinha acontecido. Isso foi por volta de outubro de 2018. Quando deixei Londres, em março de 2020, já não havia nenhum resquício dessa galeria. Tive ainda a chance de escrever sobre fotógrafos brasileiros que admiro, tais como Alexandre Sequeira (onde explorei a relação que ele estabelece com diversas comunidades, pessoas e lugares) e Fabio da Motta (que tem um impactante trabalho com bondagem e flores junto à comunidade LGBTQ+). Por outro lado, meus professores sempre foram muito receptivos às minhas propostas mais experimentais. As polaroides (in)visíveis foram muito elogiadas e cheguei até mesmo a desenvolver uma série para os corredores do piso térreo da Goldsmiths. Do mesmo modo, as fotografias-colagem da série The Commuting, que eu fiz nos metrôs de Londres, fugiam completamente do padrão geral do curso e foram avaliadas como “surpreendentes e perturbadoras”. Para minha dissertação, eu escolhi escrever sobre as esculturas de tempo de Street Topographies, um tema mais próximo da minha trajetória e dialogando com as teorias de vida cotidiana e de produção do espaço de Henri Lefebvre e da flânerie de Charles Baudelaire. Na verdade, não foi apenas um trabalho escrito. Eu criei 10 esculturas, entre as mais de 30 possibilidades que eu tinha disponíveis. Durante quase de cinco meses eu explorei Londres a fundo, sempre buscando por diferentes situações, personagens e paisagens. De modo geral, eu sou um fotógrafo mais na linha de Garry Winogrand. Ele costumava dizer que podia chegar em qualquer lugar e começar a tirar fotos, que “não precisava saber falar o idioma, nem onde comprar um café”. Nesse caso, o aprendizado da cidade tem que ser rápido e intuitivo. Comigo funciona quase sempre muito bem. Por outro lado, eu aprecio muito quando tenho a chance de me envolver com o ambiente, o ritmo da cidade e compreendê-la com mais tempo. Ter morado em Londres por um ano e seis meses, ter tido conta bancária e um endereço para receber correspondências, utilizado os serviços de saúde do NHS, estudado numa universidade, trabalhado, frequentado os pubs e ter feito amigos com certeza deram uma nova dimensão para as minhas esculturas de tempo londrinas.

 

Por fim, durante o mestrado, eu me dei conta da relação do meu trabalho com street photography. Tive sorte em ter Paul Halliday como professor, um excelente street photographer e que sempre trouxe referências dessa prática para os alunos. Eu sempre associei minha fotografia com algum tipo de intervenção ou ação urbana, mas hoje eu acho que tem muito mais a ver com a poesia e a experimentação dos street photographers. Muitas vezes, eu ouvi críticas de que eu não produzia trabalhos mais engajados socialmente, mas o fato é que o social sempre esteve lá. Só que em vez de serem mais jornalísticos ou diretos, eles são mais metafóricos e precisam de outro tipo de interpretação, talvez mais sutil.

 

Na sua trajetória, você vem trabalhando com algumas propostas que se desdobram no tempo e ganham novos contornos, em articulações rizomáticas que associam lugares geográficos e registros fotográficos, trocas de impressões e sensações entre você e os participantes, em diferentes manifestações de mail art. Neste livro Novas Maurílias – alusão à cidade de Maurília, “a cidade dos cartões-postais”, do livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino (1990) –, você parece retomar algumas de suas investidas em formas epistolares associadas a imagens fotográficas, realizadas em trabalhos anteriores como no Mando Lembranças, de 2014, ou na estratégia de difusão da exposição caractere(s): retratos em preto e branco, de 2010, quando publicou e distribuiu um catálogo em que os trabalhos apresentados na exposição do Paço da Liberdade, em Curitiba, foram reproduzidos em forma de cartões-postais destacáveis para serem usados pelo público. Esses diferentes trabalhos e propostas poderiam ser entendidos e agrupados como uma categoria especial em sua poética?

 

Na verdade, acho que a gente pode entender a arte, em geral, como um tipo de arte postal. É algo que você coloca em circulação no mundo e, com o passar do tempo, um quadro alcança novas paredes, um filme chega em telas de diferentes países, uma fotografia impressa em diferentes mídias e um livro passa por várias estantes. O artista está sempre mandando recados com destinos incertos. Só que nem sempre precisa colocar um selo nessa mensagem. Eu sempre gostei de postais e coleciono os que recebo. Praticamente 90% dos que eu tenho me foram enviados pelo Vicente Frare, para quem eu dediquei esse livro. Ele é um grande viajante e me mandou pelo correio não apenas postais de diversos países, mas também, vouchers de hotel, um recorte de embalagem de biscoito que ele comprou em Singapura e muitas outras coisas que ele encontrou pelo caminho.

 

caractere(s): retratos em preto e branco (2010) foi a primeira vez em que usei o postal como parte de uma exposição. Originalmente, caractere(s) foi uma intervenção urbana que eu recriei para o formato da galeria do SESC Paço da Liberdade. Só que, nesse processo de adaptação para um espaço privado, eu não queria romper o vínculo com o espaço urbano, que foi onde tudo começou. Disponibilizar no catálogo obras duplicadas, uma para guardar e outra para poder enviar pelo correio, foi a maneira que encontrei de levar as obras da galeria para circular pela cidade novamente. No caso de Mando Lembranças (2014), houve uma razão diferente. Esse foi um trabalho das “intervenções de maio”, que eu vinha realizando anualmente em Curitiba desde 2004. Só que eu passei o mês de maio inteiro viajando pelo interior de São Paulo, atendendo ao convite do SESC-SP para integrar o Circuito SESC de Artes. A opção pelos postais aconteceu quando eu descobri um aplicativo que transformava as fotos armazenadas no celular em postais de verdade e os enviava pelo correio. Eu estava passando por um momento de descobertas, com artistas supertalentosos e explorando as mais diferentes paisagens do interior paulista. Dessa maneira, o postal apareceu como um modo de eu colocar algo para circular pelas cidades e, ao mesmo tempo, transformar minhas andanças em conteúdo para essa ação. Eu abri uma convocatória no Facebook em que eu perguntava quem gostaria de receber (gratuitamente) minhas lembranças. Ao todo, eu distribuí 100 postais com 100 lembranças para 100 pessoas de diversos estados brasileiros. As fotos foram as mais variadas possíveis e iam de notícias publicadas em jornais locais até uma refeição especial que eu tive, bastidores de um show que eu assisti ou ainda detalhes da cidade que eu visitava naquele momento. Esse aplicativo, que eu uso até hoje, rompeu aquela tradição do postal turístico, que limita a cidade a cinco ou dez pontos de interesse que são vistos quase sempre de um mesmo ângulo. Em Mando Lembranças, optei por mostrar o cotidiano através de sua diversidade e como resultado de algo vivido de fato. São lembranças minhas, e não aquelas que se compram em bancas de jornais e fotografadas por outras pessoas.

 

Em Novas Maurílias, eu reúno referências de vários outros trabalhos, e não apenas esses acima mencionados. Assim como na ação urbana LUGAR, onde eu visito cidades com intuito de caminhar em um trajeto em L que eu desenhei previamente e descobrir o que há nesse trajeto, eu tenho uma missão exploratória a cumprir. Vejo muito também das polaroides (in)visíveis e a curiosidade que eu tenho em investigar o espaço urbano. O livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, sempre foi uma forte referência, e Maurília, a cidade dos cartões-postais, chamou minha atenção pela nostalgia que os postais despertam. Como o próprio autor disse, por meio dos postais a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi. As Novas Maurílias que eu apresento nesse livro são os 10 menores municípios do Paraná. São cidades jovens, fundadas entre as décadas de 1960 e 1990, e com população entre 1.400 e 2.500 habitantes e sem nenhum cartão-postal impresso. Como estarão essas localidades daqui a 50 ou 100 anos, só o tempo nos dirá. Muito se debate sobre a dissolução ou criação de políticas de desenvolvimento que evitem a implosão desses municípios. Estarão invisíveis (residindo apenas na memória das pessoas que um dia por lá estiveram)? Novas Maurílias é uma coleção de imagens, depoimentos e sentimentos que estou encapsulando para ser revista em tempos futuros.

 

 

Referências

 

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009.

 

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2012.

 

LISBOA, Tom. SIMTOMNIZADO. Disponível em: <https://www.sintomnizado.com.br/>. Acesso em: 12 ago. 2020.

 

Tânia Bittencourt Bloomfield

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - 2012. Mestre em Geografia pela UFPR - 2007. Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) - 2000. Licenciada em Educação Artística pela UFPR - 1995. Licenciada em História pela Universidade de Brasília (UnB) - 1987. Professora do Departamento de Artes da UFPR desde 1998. Artista visual com diversas exposições realizadas no Brasil e no exterior. Pesquisadora com interesse voltado às interfaces entre os campos da Geografia e Artes Visuais, especialmente no que se refere às práticas artísticas no urbano e às linguagens artísticas contemporâneas.

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The Communting (2019)

fotocolagem

(clique sobre a foto para ver

detalhes da fotocolagem)

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Street Topographies (2010)

impressão sobre lâminas de acrílico

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Blow up (2007)

intervernção urbana

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Closer (2018)

intervenção urbana

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Palimpsestos (2007)

video

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polaroides (in)visíveis (2005)

intervenção urbana

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polaroides (in)visíveis -

intervenções privadas (2006)

intervenção urbana

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polaroides (in)visíveis -autorretratos (2007)

 

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Cowtadinhas (2007)

interveção em açougues de Curitiba

 

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Still Life (2009)

trechos da animação web

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abrirá em uma nova janela)

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M(USE)U (2017)

Letreiro luminoso instalado na fachada do MAC PR

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Mirando (2009)

intervenção urbana

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ação urbana LUGAR (2007)

(ao clicar sobre a foto, você será redirecionado(a)

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Brinquedografia(2013)

(ao clicar sobre a foto, você poderá ver, em uma nova janela,  o interior de uma das câmeras

em funcionamento)

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caractere(s): retratos em preto e branco (2010)

registro da exposição no SESC Paço da Liberdade

(foto: Patrícia Lion)

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projeto cinematógrafo (2006)

intervenção urbana

Linhas de Horizonte (2020)

trecho do video do projeto 

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